terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Cap. 7: Letras ou números?

– Venha Luís, hora de acordar – disse minha mãe.

E aqui avançamos um pouco no tempo. Cá estamos comigo, nos meus dezoito anos, faltando muito pouco para escolher a minha carreira. Nunca fui muito certo do que seguir. Isso, ao longo do meu ensino médio, se revelou um grande problema.

Temos, afinal, minha mãe. Moça muito bonita, mesmo em sua idade avançada. Excelente dona de casa, alguém de quem posso agradecer ter sido filho. Seu inconveniente, porém, causou muitos problemas à família, principalmente em relação ao meu futuro.

Maria Augusta de Oliveira, era seu nome. Ela atenderia, porém, se a chamassem de Guta Jobim, ou até mesmo Guta de Moraes. Ah, como era intenso seu amor pelos poetas da nação, pelas lindas palavras misturando-se em versos e estrofes, combinando como as cores de uma asa da mais bela borboleta.

E nisso, temos o conflito. Maria Augusta sempre sonhou com um filho letrado, talvez poeta, talvez escritor. Por enorme respeito a ela, durante muito tempo pensei em cursar a faculdade de letras, atendendo aos devaneios de minha mãe.

O confuso leitor provavelmente se pergunta aonde estaria o problema. Afirmo que, sem dúvida alguma, ele estava em Pedro Tomáz de Oliveira. Justamente ao contrário de Maria Augusta, meu pai era um homem centrado, ajuizado e, principalmente, engenheiro. De fato, até hoje não consigo entender como duas figuras tão distintas conseguiram um dia se unir para o resto de uma vida tão conflitante quanto a deles.

Minha mãe, sabendo do pensamento de meu pai, falou comigo em segredo, combinamos de não revelar nossa intensão para o futuro. A omissão, todavia, foi de curto período, pois um dos piores inconvenientes de Maria Augusta era o seu irresistível desejo de dizer o que pensa, seja isso bom ou ruim.

Foi em um dia qualquer que meu pai, pela primeira vez, sentou à mesa comigo para conversar sobre a carreira que eu seguiria. Afirmou que havia muitas opções, poderia escolher da economia à engenharia, entre outras opções não tão boas, mas satisfatórias. Disse que estávamos passando por um estágio de crescimento, o mercado estava aquecido e diversas mais besteiras. Enquanto ele falava, eu só via o vermelho subir pela pele de minha mãe.

Pode se imaginar o desfecho. Seguiram-se dois anos de muitas brigas entre os dois pelo meu futuro. Enquanto meu pai falava números, minha mãe predizia títulos e textos de minha autoria. Um não conseguia escutar as palavras do outro.

Acabou-se, porém, com um acordo no fim. Minha mãe desejava as letras, muito bem. A faculdade, no entanto, não poderia ser de letras, mas direito. Era essa a condição de Pedro Tomáz. A desgosto, Maria Augusta aceitou a cláusula e aqui estou eu, bacharel em direito, funcionário público, que, quando jovem, costumava advogar.

Cap. 6: "Venha Luís"

Seu nome era Antônio. Nascera em uma cidade do interior de Minas Gerais (e seu sotaque sempre foi motivo de risos), porém seus pais, de classe baixa, viajaram ao Rio de Janeiro à procura de melhores condições de vida. Passaram-se quatro anos até conseguirem ascender à classe média, colocando o filho em uma escola católica, onde o conheci. Foi no ano de 1968, no explendor dos meus dezesseis anos, na maior exuberância negra de meus cabelos. O mineiro, porém, tinha também cabelos que rivalizavam com os meus, e isso sempre me colocou em uma competição estupidamente juvenil entre quem conseguia mais elogios de admiradoras. Obviamente, ele sempre obteve o maior número.

Antônio Castro, ótima pessoa, embora rebelde demais para meu gosto. De fato, ele era um ano mais velho do que eu, com dezessete anos em 68. Devido a amigos em comum (e eram poucos os meus), tive o primeiro contato com ele na frente do colégio. De início, não gostei daquele jeito dele, como se superior. Era arrogante, muito, e ainda mais, parecia-me estúpido. Revelou-se, no entanto, muito inteligente, embora tomasse atitudes imbecis ao meu ponto de vista. Bebia, fumava, pregava o ateísmo em uma escola católica, dentre outras idiotices de “vanguarda”. Era muito movimento para alguém como eu.

Aliás, ele era comunista ferrenho, apaixonado pela revolução impossível. Após semanas de diálogos, seus pensamentos conseguiram me influenciar ao esquerdismo, embora nunca tenha me entendido bem com a prática da violência contra o “Estado repressor”. De fato, não entendia bem os verdadeiros ideais que pregava, mas via-me como um intelectual defendendo Marx, o que para mim era suficiente.

Foi em uma noite comum, porém, que perdi o contato com ele, no auge de nossa amizade. Em uma tarde das férias de Julho, as quais muito prezava, marquei o cinema com meus escassos amigos, dentre eles Antônio. Não me recordo realmente do filme, mas isso não me interessava muito na época. Creio que os jovens não vão ao cinema pelo conteúdo, mas pelo prazer de estar entre companheiros, ou pelo menos, sempre assim foi para mim.

A noite, todavia, não fora muito agradável. Durante a sessão, inconvenientemente, Antônio e outros começaram a gritar e insultar o governo ditatorial, escandalizar a censura do filme, entre mais vandalismos. Fomos ameaçados de expulsão do cinema, mas, quase que por encomenda, um apagão interrompeu o filme. Era o que faltava.

Deparei-me com pipocas voando, palavras cuja menção não ousaria nesse texto, refrigerante derramado no chão e outras barbaridades daqueles ao meu lado, todos liderados por Antônio. Após poucos instantes de balburdia, homens com lanternas aparecerem correndo. Não tive opção se não correr com aqueles rebeldes, generalizando-me naquele absurdo. Conseguimos fugir de todos e, com muito cansaço, salvamo-nos de qualquer complicação.

– Falta pouco para você ser preso, Antônio... – disse eu, ofegante.
– Luís – sabia que daquele aposto não viria nada que me agradasse. – Vou para a luta armada.

Engraçado lembrar disso. Muitos aqui diriam que foi um soco no estômago para mim. Psicólogos e psiquiatras analisariam o impacto da frase no meu comportamento e forma de pensar atuais. Tantas complicações para algo tão simples. Nem ao menos me impressionei. A surpresa foi presente, é bem verdade, mas nada que tenha me causado espanto.

– Venha, Luís – disse ele. – Venha para a luta armada.

Não é realmente necessário revelar minha resposta. Eu, para a luta armada? Mal sabia pegar em um cigarro, quanto mais em uma arma. Poderia ter atirado no ar, mas seria tão bom no tiro quanto na cama. Neguei a proposta e tentei – pouco, é verdade – convencê-lo de desistir da loucura.

Antônio, porém, foi para a luta armada. Não tive notícias dele durante cerca de onze anos. Apenas com a Anistia pude revê-lo, quase que por acidente, no aeroporto. Esperava por minha mulher no Galeão, mas por uma estranha coincidência do destino, o avião atrasou e encontrei-me com meu antigo amigo. A despeito de algumas cicatrizes e alguns fios brancos, não parecia muito diferente, embora tenha sido ele que me reconhecera, em uma época em que tinha meu cabelo curto. Dali estenderam-se alguns telefonemas de aniversário, páscoa, natal, entre outras datas comemorativas. Se não me engano, tentou a política em Minas Gerais, mas não conseguira nada além da Câmara Municipal de sua cidade natal. É uma pena. Se não estou completamente errado, era de boa índole e, provavelmente, honesto.

Na noite em que ele se foi, porém, não consegui dormir. Deitei inquieto, assolado por uma febre repentina que não me deixava descansar. Fechava os olhos e via Antônio com um cigarro em uma mão e um revólver em outra, apontando para mim sua arma e repetindo a mesma frase: “Venha Luís, venha para a luta armada. Venha Luís, venha para a luta armada.”

E eu virava-me e revirava-me em minha cama, tentando esquecer aquela besteira. Nunca, em qualquer momento, eu pensei em realmente ir para a luta armada. A frase, todavia, continuava a me assolar: “Venha Luís, venha para a luta armada. Venha Luís, venha para a luta armada. Venha Luís, venha para a luta armada. Venha Luís...”