sexta-feira, 28 de março de 2014

O potencial ausente de brilho

Saindo hoje das proximidades da Ilha do Governador em direção ao meu trabalho, na praia de Botafogo, acabei por atravessar uma grande região suburbana, adentrada principalmente por São Cristóvão e sua feira, o São Januário, as milhares de casinhas tão adensadas que quase entrelaçadas umas às outras. Passei pelos mais diversos botecos sujos, com seus bêbados matutinos, a contínua precariedade das instalações elétricas, viadutos a se transversar, tijolos e argamassa talvez tão expostos quanto às desinibidas moças, cuja cor escura contrastava com suas roupas tão claras quanto o céu acima delas.

Não sei por que, mas sentado no ônibus no qual me encontrava, percebi uma sutil, mas sólida síntese estética transpassando a janela, que me seduzia por um atrativo sentido de insignificação social, a coletivizar todos aqueles indivíduos em uma belíssima dinâmica sensual de pequenas e casuais brutalidades. Mas essas não se faziam pesadas, como vejo diariamente na Zona Sul, pois estava nítida ali a leveza do bruto, como se diamante ainda não lapidado, cuja beleza reside no potencial ausente de brilho.

Tenho certeza que seria feliz em uma pequena casa de uma daquelas tantas vilas, em meio a tantas outras residências, a me insignificar com tranquilidade, lendo, desenhando, pintando e compondo, no mais perfeito anonimato. Não precisaria de muito, não haveria necessidade de ostentar nada. Seria feliz a beber nos bares sempre cheios, como o Marujos, que bravamente mantém seu ar suburbano em meio à estética cosmopolita de Copacabana. Encontraria também a felicidade no ventre das mais desinibidas mulatas, cuja beleza pode ser percebida apenas despindo os olhos das ilusões frias da Zona Sul.

O bruto se faz belo no subúrbio pela sua própria insignificância social. O amor, talvez, se mostre em sua plenitude apenas quando longe dos nossos eternos conflitos de projeções.

sábado, 22 de março de 2014

Mensura-me

Mas como pudera eu medir o efêmero?

O que utilizo para mensurar o pouco que ficou?
Com que unidade se define a medida daquilo que, uma vez sólido, desmanchou-se no ar?

Poderia traçar uma reta diante das curvas pelas quais passamos, o sentido teria sido um só. A direção indefine-se pelo frágil estalo que o som de Guilherme provoca ao ser mencionado.

Afinal, nada é pouco quando a escassez se faz gigante.
O muito se faz, se fez por essa necessidade.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Algum dia creio ter sonhado qualquer coisa.
Depois, acabei por me perder em sonhos.
Hoje, meu medo é estar desaprendendo a sonhar.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Insensatez da infância

Há dois episódios que minha memória alcança de extrema insensibilidade e mesmo crueldade da minha parte para com outros. Por vezes é difícil digerir lembranças tão barbaramente impalatáveis, com um eu em tão torta construção naqueles dois momentos.

Ambos são de praticamente uma mesma época, algum lugar do tempo entre meus 10 e 12 anos - como se vê, nem tão infância assim, apesar de ainda predominante. Apesar da relutância em descrever tais atos, creio que seja hora de expô-los a fim de vomitá-los e, assim, expurgá-los de minha essência.

Trataram-se de episódios que culminaram em uma profunda análise de consciência, que me fizeram posteriormente divergir transversalmente do rumo que seguia meu ideário moral. Tais análises se fizeram imperativas pelas reações às minhas ações, que, pela coragem e humilhação, provocaram sentimentos de nojo e aversão própria dentro de mim.

Seria a "culpa da burguesia"? Talvez sim. Afinal, sou entusiasta da noção de que nossos maiores ideais não são determinados por uma construção racional própria, mas uma série de emoções que vivemos ao longo da vida que se misturam à nossa moral e formam uma visão singular de mundo. Não acredito que ideias se invalidem por partirem de uma culpa interna, ou qualquer outro sentimento moralista que seja. Creio, de fato, que esses sentimentos sejam pré requisitos para as ideias que defendemos.

Reluto ao expor os tais atos. Farei-o cruamente, de modo que não há de se esperar prazer e agradabilidade na leitura.

Ou não, talvez eu não esteja pronto para descrever os episódios. Desculpe, nenhuns leitores, não será dessa vez que me mostrarei cruelmente falho.

O que ficou de impalpável

Ah, lembro-me de como a perda sempre me foi apresentada como agressão, um assalto ao desejo, mas há salto nessa compreensão. A falta que ficou foi a parte mais insignificante de todo incongruente sentimento gerado pela intimidade arrancada de nossa uníssona presença. A beleza do caos se impôs sobre qualquer definição possível de sensação palpável, ao menos distinguível no mar revolto no qual me afoguei ao mergulhar para longe de ti.

Os sonhos gelados, talvez, de líquido torpor foram a principal marca de nossa confusa apartação, cujos insistentemente calorosos suores se impuseram como reflexo físico de um nunca tranquilo sono. O alvorecer se fez úmido, mas a noite é sempre fria.


Desculpe a demora, pois tardei em adormecer.