sábado, 3 de outubro de 2009

Parte de algo mal escrito

Percebi, de súbito, a ausência dos meus óculos. Menos devido à visão ruim e mais por saber da falta do pertence tão necessário, sem as lentes sou assaltado por terríveis enxaquecas.
Procurei à volta, olhando superficialmente pelo escritório. Nada. Não poderia achar a certidão com a minha visão míope.
Senti logo as dores mentais. Encolhi-me dolorosamente, coloquei a mão sob a testa e sofri com a dilatação das luzes. Amaldiçoei a situação, irritando-me com meu estado. Enxaquecas já tinham se integrado à minha rotina, diariamente era assolado por aquele mau. Não havia muito tempo que começara. Infelizmente.
Bocejei pesadamente e gritei pelo nome de minha filha. A resposta, para minha surpresa, não veio imediatamente, mas após uma longa pausa de silêncio absoluto.
- O que é, pai? – gritou finalmente em resposta.
- Procura aí na sala meus óculos.
Silêncio novamente. Poucos instantes se passaram e logo ouço em um grito:
- Hm... Não.
Dei-me por satisfeito a princípio. Porém, uma dúvida veio à minha mente, o que me provocou divagações razoavelmente perturbadoras. Afinal, minha filha havia negado a presença dos óculos na sala ou o meu pedido de procurá-los? Considerei-me de imediato um tolo por pensar tal crueldade atribuída a um parente tão próximo.
A dúvida, todavia, não se apagou. Como revelado anteriormente, um dos meus maiores defeitos é a facilidade com que uma questão simples pode se fixar na minha mente e causar-me efeitos assustadoramente devastadores.
Tentei, então, raciocinar nos sentidos sintáticos da pergunta. Embora a enxaqueca continuasse a assolar-me com as dores, consegui, em um período de tempo relativamente curto, concluir a ausência de opção correta. A ambiguidade era facilmente notada no diálogo e a negação poderia se dar nas duas alternativas anteriormente citadas.
Amaldiçoei minha filha, com enorme pesar, por não ter sido mais específica. Mergulhei em pensamentos malditos que, misturados à enxaqueca, transformavam-se em uma orgia mental já conhecida, da qual geralmente não resultam boas coisas.
O leitor obviamente deve questionar a razão pela qual não perguntara a Carla a resposta de minha aflitiva dúvida. De fato, não havia motivo algum. Creio apenas que, devido a uma relativa falta de intimidade com meus filhos e a reflexão exclusiva pela qual passava, não me viera a mente tal solução.
Julguei, por fim, que Carla negara-se a procurar pelos óculos. Refletindo melhor atualmente, não posso me creditar tanta certeza, tendo em vista a ambiguidade conflitante da pergunta e resposta. Porém, estava certo, no momento, de que minha própria filha havia se entregado ao ócio e à indiferença, roubando-me a oportunidade de achar minhas lentes e restabelecer uma visão , muito provavelmente, foi o começo de uma série de discussões com meus três filhos. Não tenho por que acreditar que não sou mais amado pela prole, mas não posso negar o fato de que as visitas tem sido pouco frequentes. Tolo fui ao conflitar por motivos tão corriqueiros. Pago o preço agora e encontro-me em profunda solidão.
Poderia, entretanto, ter sido diferente? Caso estivesse certo, minha filha cometera um ato terrível. Com 50% de chances de estar correto, tive razões para odiá-la naqueles instantes. Como cria minha poderia cometer tal absurdo? Analisando agora, creio que fiz correto. Deve-se ser rígido com a punição, mesmo quando passa a infância e adolescência da prole. Caso meus filhos tenham se tornado pessoas vis a ponto de chegarem a tal extremo, não foi devido à educação que tiveram. Em relação a isso, minha consciência permanece tranquila.

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