quarta-feira, 30 de abril de 2014

Não sinto calor, mas está tão abafado... Um ar sufocante, que lentamente me pressiona para uma pequeneza imprecisa, apertada. Como se o espaço se reduzisse ao fluxo de pensamentos e sensações.

Estou ficando cada vez menor diante da grandeza do mundo.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Meu medo

Quando criança, comecei a desenvolver narrativas futuras à minha vida. Começando a ler livros de ficção, entre os oito, nove anos, não consegui me imaginar trabalhando com qualquer outra coisa que não fosse a literatura (infanto juvenil até então). Mas não me bastava dizer: 'Serei escritor', era necessário criar histórias, datas e marcos na minha vida profissional (sempre interagindo com uma desvalorizada vida pessoal). Eram verdadeiras histórias que criava na minha mente, de certa forma semelhantes àquelas às quais submetia meus brinquedos.  

Meu sonho de ser escritor durou até os 13, 14 anos, tendo rendido três (péssimos) livros de ficção incompletos. Um chegou a ter 190 páginas de folha A4, enquanto outro tinha 90, e o último, 40. Recentemente reli esses livros com muito gosto, rindo de como pude algum dia escrever tamanhas barbaridades. Lembro de como esse sonho foi cada vez mais dando lugar a outro: o de ser músico.

A música sempre me foi sedutora, mas o sonho, a projeção, tal qual me fora a ideia da literatura, já me foi bem mais incerto. Havia certamente a questão da aptidão: enquanto muitos elogiavam - não sei como - meus livros e histórias, como músico demorei muito a receber qualquer elogio que fosse. O ritmo foi-me o primeiro desafio, me levando a passar horas tentando separar compassos. Nunca me foi natural o aprisionamento do som em uma batida contínua, tinha até então ouvido música de forma extremamente errática. Talvez só com 15 anos tenha começado a dominar meu passo, de modo que pude me disciplinar a trocar de notas no tempo certo. Até ali, no entanto, já tinha criado todos meus álbuns, datas de lançamento, críticas e entrevistas da vida de músico projetada na minha mente.

Foi a partir dessa idade, no entanto, que começaram outros dois interesses: política e economia. E assim passei a me imaginar também político e economista. Para piorar, aos 16 anos redescobri a literatura, através da biblioteca pessoal do pai de minha primeira namorada. Começando por Goethe, seguindo por Camus, até pousar finalmente em Graciliano Ramos, o sonho de ser escritor retornou como um foguete que volta estrondoso à Terra. Foi nessa época que criei esse blog.

O novo sonho de escritor durou até meus 18 anos e rendeu, dessa vez, bons contos. O desejo de ser músico voltava então, finalmente rendendo críticas positivas às minhas composições. Até os 20 anos meu estudo e produção foram intensos, mas desde então dando lugar a outros sonhos.

Hoje me vejo aqui, fazendo estágio no Instituto Brasileiro de Economia, estudando Ciências Econômicas na UFRJ, cursando o programa de Fundamentação da Escola de Artes Visuais, escrevendo sobre música na Revista Agito Rio. Parece-me às vezes que perdi um pouco o rumo e misturo os sonhos. Minhas projeções narrativas continuam, mas agora diversificadas, abarcando múltiplas possibilidades. Diante disso, percebo meu receio de ser monocromático. Não quero me ver no futuro limitado a um caminho por ter sido obrigado a escolher. Meu sonho de fato é transitar por todos os versos da vida, descobrir e desenvolver quantas aptidões forem possíveis.

Talvez meu medo seja tornar o futuro previsível.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Isso é arte?

Essa talvez seja uma das perguntas mais imbecis já feitas pela sociedade ocidental, em qualquer momento do tempo, para qualquer obra. Não vou me explicar muito, acordei meio Pondé hoje (sorry, Constantino), mas esse fetiche nosso pelo limite filo conceitual é realmente desgostoso. 

A questão não é se isso é arte, mas se arte é isto. 

A obra está para arte assim como o oceano está para o fundo do mar. 

Seu Choro é leve e belo

O Arpoador já foi escolhido pelos cariocas como o local mais feliz da cidade. Nada mais contraditoriamente natural do que terem sido realizados lá alguns shows de comemoração do Dia Nacional do Choro.

Diante desse infame hábito carioca de bater palmas para o pôr do Sol, este se escondeu ontem atrás das nuvens para que pudessem os músicos serem os aclamados do dia. Os shows puderam ser ouvidos por todo o arredor do Posto 7, adicionando sublime sonoridade à beleza visual da praia.

O Rio de Janeiro não é a Cidade Maravilhosa apenas por sua paisagem, mas principalmente pelos cariocas, que, com todas suas contradições, transpiram leveza e musicalidade.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Não sei hoje se me rasgo de suas memórias ou se me uno ainda mais a esses tão breves e atormentados momentos. A angústia da indefinição mergulha sobre mim e, de repente, me vejo aprisionada nesse eterno retorno à sua lembrança. Meu corpo se estica ao som do não movimento, minha mente se espalha por esse breve não ser, que emerge de dentro de mim. Estou no limbo entre o 'não você' e o 'não eu'.

Ah, mas minha pele clama pelo seu suor, enquanto meus pensamentos gritam para não ouvir o azul da sua voz. Meu maior desespero seria ter-me novamente em seus braços, que me aqueceriam naquele úmido abraço no qual nos imergíamos tão violentamente.

Talvez eu busque um pouco da dor que você me fez sentir, só para não voltar a me anestesiar.

Recalque por uma nota ruim

Sou chato. Para piorar, minha chatice hoje não está nem mais velada sob o véu da subjetividade, mas é objetivamente mensurada, através do aplicativo "Lulu", que, no atributo "Humor", avaliou-me com uma média de 6,5, de longe meu pior score nesse teste. Por que isso, afinal, se não sou carrancudo, ou mesmo mal humorado de fato? Acredito, na verdade, que essa nota tenha se dado muito por um péssimo hábito meu, que fui adquirindo rapidamente ao longo da vida, de simplesmente pensar demais sobre qualquer situação, em qualquer momento.

Não sei realmente a que isso se deveu. Realmente, não há no meu histórico familiar aspirantes a pensadores de qualquer coisa. Nunca tive amigos importantes até meus dez anos, e nem aqueles que começaram a importar para mim tinham qualquer propensão à intelectualidade. Mas a verdade é que hoje estou treinado em captar relações, dissecar formalismos, buscar padrões em praticamente tudo que experimento à minha volta. Ouço uma música sempre tentando compreender sua estrutura rítmica e harmônica, procurando proximidades com outros compositores (sou mestre em identificar melodias semelhantes). Vai além, assisto um filme hollywoodiano antecipando seu clímax e final, vejo uma pintura já buscando sua forma, mensurando seu grau de planaridade, etc...

Fosse apenas isso, não restaria problemática alguma, pois há quem aguente e - pasmem - goste dessa minha chatice. A questão é justamente que a causa da mesma, meu overthinking, me atrapalha profundamente em desenvolver algo que me é muito precioso: minha sensibilidade. Entendam, nenhuns leitores, isso não quer dizer que não sinto nada, mas que não consigo identificar, sintetizar ou compreender meus sentimentos. E isso se tornou um grande problema a partir do momento em que eu comecei a me envolver emocionalmente com a arte, pois esta, apesar de poder ser pensada no ex post, se origina única e exclusivamente de sensações e sentimentos, que são canalizados através da força interpretativa do artista.

Isso quer dizer que pensar atrapalha a sensibilidade? Não sei exatamente, mas quando imagino as duas coisas juntas é como se a primeira fosse a conversa entre muitas pessoas espremidas no elevador, e a segunda fosse a melodia que toca ao fundo. É preciso que se converse mais baixo para perceber que algo está tocando, e é necessário estar em silêncio para se apreciar totalmente a música. O que essa analogia significa é que os sentimentos, mesmo quando se manifestam explosivamente, são sutis e cheios de detalhes próprios, nunca poderão ser identificados quando os ruídos do pensamento se fazem muito volumosos.

Como escapar dessa quina de sinuca e fazer arte? Mas é claro, mergulhando no formalismo. Explico: conforme fui me interessando em fazer músicas de verdade (ou seja, para além daquelas que compunha até os dezoito anos, de maneira extremamente caótica e randômica), fui percebendo que me faltava um certo conforto comigo mesmo em experimentar qualquer coisa para além daquilo que já conhecia. Minha solução, então, foi conhecer absolutamente tudo que o tempo me permitisse, indo de Phillip Glass a Shawlin e, assim, estender ao máximo minha gama de possibilidades musicais.

A consequência de tal escolha se mostrou clara no limiar dos meus 20 anos, no qual compus cinco músicas pensando: vou fazer algo que Steve Reich faria se encontrasse com a Björk. O resultado foi um EP, nomeado (quase ironicamente) de 'Fluxo de Inconsciência', que teve uma boa repercussão entre meus amigos, até por dois pianistas cujo trabalho eu muito aprecio. Mas, apesar de toda crítica greenberguianamente positiva possível ali, senti naquelas músicas que faltava muito algo de meu.

Esse problema se estende a todo tipo de arte que tento produzir. Quando escrevo, penso: vou fazer algo que Clarice Lispector faria, ou talvez Graciliano Ramos, quem sabe Agualusa. O único que escapa desse genocídio literário é Mia Couto, cujo pedestal no qual o coloquei é muito alto para eu pensar em alcançar. Nas artes visuais ainda não sou bom o suficiente para pensar em forma de desenho, mas quando o for, tenho certeza que pensarei antes de qual tradição vou tomar as linhas, cores, etc...

Estou, atualmente, treinando o máximo possível para silenciar gradualmente meus pensamentos. Tenho flertado com as ideias de fazer uma meditação, yoga, algo que, para eu realizar, precise de total vazio mental. Talvez, então, consiga aprender a identificar meus sentimentos e parar de dizer por que razão objetiva eu gostei de tal obra de arte. Parece-me menos chato. Quem sabe, assim, não possa melhorar minha nota no "Lulu"?

Sobre Pondé

Diante de um texto que destruíra meu respeito intelectual por Luiz Felipe Pondé, o último articulista da direita que considerava honesto, resolvi me enveredar no seu pensamento e ler seu último livro: "A filosofia da adúltera - Ensaios Selvagens", a fim de compreender suas afirmações. De fato, além de um estilo textual que muito apreciei, pude entender, a partir da explicação de sua tradição intelectual e motivações, muito de sua filosofia, até na sua última coluna do jornal 'Folha de São Paulo', na qual afirma que a esquerda se proliferou necessariamente porque consegue comer mais mulheres, e a direita tem que ser festiva para fazer o mesmo.

Pondé basicamente entende o corpo como 1- objeto de tédio e 2- origem do pensamento (o seu corpo determina suas convicções, ideias e mesmo sua forma de pensar). Em uma leitura extremamente nietzschiana, o filósofo vê o sofrimento como engrandecedor, sem o qual apodreceríamos entediados. Assim, todo homem que faz de tudo para não sofrer é um covarde, e todos aqueles que acreditam  na libertação sexual é ignorante - ou canalha, com motivações próprias de comer mais mulheres.

Como esquerdista (ou ao menos progressista), claro que não concordo com nada, ou quase nada disso, mas não posso deixar de voltar a respeitá-lo. Afinal, Pondé escreve tudo rigorosamente sob suas convicções filosóficas, as quais construiu com excelente destreza e invejosa intuitividade. Não pude deixar de ser simpático a muitas de suas ideias, como a de que o corpo é a origem do pensamento, mas também não posso deixar de criticar três elementos negativos que vi gritantemente em seu livro:

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1- Pondé basicamente trata da condição humana, colocando-a muito acima da condição social. Sou entusiasta dessa ideia, desde tempos antigos, sendo leitor assíduo de todo escritor e filósofo que busca entender a alma do homem. Mas me incomoda muito a exagerada assertividade - e falta de explicação - das afirmações do pensador sobre a tal condição humana, inclusive algumas muito perigosas, como uma das primeiras do livro: "é da natureza feminina desejar tudo que dói". Talvez eu mesmo peque pelo meu relativismo exacerbado, ou pela minha paixão pelo método, mas vejo uma grande distância entre você investigar a condição humana e você começar a listar inúmeras máximas sobre a mesma. Hélio Schwartsman, outro filósofo e colunista da Folha, lembrou há algumas semanas de diversos testes psicológicos já realizados que associam veemência a ignorância.

2- Pondé mais de uma vez critica a ciência "objetiva", deslegitimando-a como conhecimento ou mesmo informação - outro aspecto do seu pensamento ao qual também sou muito simpático. No entanto, também mais de uma o autor utiliza a mesma como um impreciso argumento de autoridade para suas afirmações. Transcrevo aqui duas passagens que evidenciam tal contradição:

"Faço filosofia sobre o que está entre as pernas das mulheres porque gosto de estar entre as pernas de mulheres, e não por alguma razão histórica defensável, apesar de que, como disse acima acerca da teoria evolucionária, acho possível sustentar minha máxima "o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres" com alguma cientificidade, apesar de desprezar esse tipo de fundamentação. Minha simpatia pelo darwinismo é antes de tudo devido ao seu caráter dramático, e não científico".
"A morte do pudor acaba por gerar o desinteresse pelas mulheres. Tema clássico em Nelson. Os jovens (que jovens? Eu?) são os que mais apresentam esse desinteresse na sua forma mais brutal, segundo nosso filósofo selvagem. De Nelson pra cá esse fato se tornou científico: as mulheres gemem sob a bota do desinteresse masculino por elas".

3- Pondé passa boa parte do tempo xingando os esquerdistas, em especial as feministas. Ok, sem problemas, se não houvesse entre as suas críticas mentiras sutis, ainda que cristalizadas no ideário popular. Transcrevo, talvez, a principal mentira:

"Sei que tudo isso é bobagem. O novo moralismo, filho da esquerda festiva, diz que, se você gosta de apanhar, é porque você é uma mulher machista. Antes a acusariam de pecadora, agora de reprimida e machista. A festiva virou o puritanismo secular de hoje. O feminismo é a nova forma de repressão da sexualidade feminina, e logo será de toda forma de sexualidade".

Não, isso não é verdade. A principal bandeira feminista é a autonomia da mulher para decidir o que fazer consigo mesma, inclusive se deixar apanhar. A mulher que apanha porque gosta é uma feminista nata, pois não submete seu desejo ao senso comum. Machismo é pressupor o que a mulher deve ou não gostar.

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Basicamente é isso. O que entendi principalmente de Pondé é que ele é um dramático. Sua intenção é mostrar "a vida como ela é", mas acaba mostrando "a vida como ela pode dramaticamente ser". Seu discurso é extremamente pessimista e cético, o que não deixa de ser legítimo e sedutor, principalmente nesses tempos estranhos. Além de tudo, seus ensaios são belamente escritos (ao contrário de suas colunas na Folha) e de uma genialidade ímpar. Com limitações, posso dizer que hoje gosto muito dele como pensador, apesar de não concordar com quase nada do seu pensamento.

sábado, 19 de abril de 2014

Sobre o mundo (e o Brasil)

Há quem diga que sou melancólico (me chamaram disso semana passada), mas a verdade é que talvez haja poucas pessoas tão otimistas sobre a vida quanto eu mesmo. A despeito de meu insistente relativismo, sem falar desse pensamento contemporâneo cretino, consigo ver diante do embaçado de minha míope visão um avanço, algo pelo qual consigo prever, mesmo que com inseguranças e ressalvas, um futuro menos tenebroso dos que aqueles proclamados aos quatro cantos.  

Talvez seja a anestesia, talvez a falta de informação. Mas de fato não consigo ver aonde estamos pior do que há dez anos atrás, e assim por diante.
A continuidade faz barulho. Rompe-se silenciosamente.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Fui Crime, Serei Poesia

Tais palavras foram escritas em tinta spray, sendo anonimamente pichadas em diversas superfícies ao longo de todo o Rio de Janeiro. A primeira vez que as vi, estavam marcadas em um muro de Copacabana, à frente de um ponto de ônibus na Francisco Sá. Não pude deixar de apreciar a mensagem, que claramente se remetia a uma auto redenção através da arte, uma ideia da qual sempre fui entusiasta.

Pouco tempo se passou e comecei a perceber a frase espalhada por toda cidade. Não parecia mais um manifesto individual, mas uma ação coletiva a fim de propagar uma bela mensagem. Foi voltando dos arredores da Ilha do Governador, no entanto, que li uma instigante pergunta, escrita sobre toda a extensão de um muro, cujo fundo amarelo dava apenas mais força às letras negras: "Você conhece Hélio Oiticica?"

Qual seria a relação entre uma coisa e outra? Hélio Oiticica, de fato, talvez tenha sido o mais importante artista plástico do Brasil, cujo trabalho é até hoje reconhecido internacionalmente. Sendo um dos pivôs do movimento Neoconcretista, Hélio pautou sua arte na quebra da abissal distância entre o expectador e o objeto, colocando o público como elemento ativo de seus projetos, com as mais diversas proposições, trajes, quaisquer ferramentas que pudessem interagir com aqueles que as observavam inicialmente.

O que Hélio Oiticica procurava com essa inversão tão profunda da dinâmica da arte até então? Seu intuito artístico parecia ser, talvez, um projeto de redenção de toda uma sociedade, que, através da interação com a arte, se libertaria de sua essência mais pobre e fraca, que a condena ao eterno retorno. Talvez o melhor exemplo dessa intenção tenha sido a proposta do artista plástico de utilização do samba como instrumento de libertação pessoal, pelo êxtase "suprassensorial" que este causava.

Com boa parte dos seus trabalhos desenvolvidos no bairro da Mangueira, Hélio Oiticica parecia principalmente procurar emergir o povo brasileiro de suas prisões coletivas e particulares para um novo horizonte de libertação através da interação com a arte, principalmente a arte marginal, ou seja, aquela fora do núcleo artística, envolto de demasiadas regras e formulações. Duas de suas frases mais conhecidas foram em relação a essa marginalidade:

"Hoje sou marginal ou marginal, marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação"

"Seja Marginal, Seja Herói"

Essa segunda ganhou ainda maior dramaticidade por ser constantemente associada à resistência da Ditadura no Brasil,  apesar de ser de um proposito maior, o heroísmo da própria libertação, da elevação pessoal a um patamar no qual o novo ganha seu próprio espaço.

Assim, pode-se relacionar a própria elevação pessoal defendida por Hélio Oiticica com a mensagem que hoje tanto se vê nos muros do Rio de Janeiro. A poesia redime toda e qualquer condição criminal do ser humano, libertando e elevando-o para um novo estado de marginalidade, no qual a arte se faz plena com a interação de seu propositor e expectador. O projeto de Hélio Oiticica, afinal, parece ganhar algum contorno sobre a nossa ainda triste realidade.




A vida é sofrimento

Essa seria a primeira das "quatro nobres verdades" do Budismo. Sua interpretação pode ser equivocada, se adotada uma perspectiva pessimista da mensagem. Seu significado revela cinco agregados do sofrimento relacionados à vida aos quais o ser humano se apega, fazendo-o sofrer.

O Dhamma, ou seja, a palavra de Buda, é uma orientação no sentido de o ser humano se livrar do sofrimento, por esse nos afastar da tal "felicidade estável".

Por que estou falando isso? Porque ao estudar o budismo, e assim sua inequívoca devoção à luta contra o sofrimento, surge-me a questão: é possível produzir arte sem esse sentimento?

Nietzsche, por exemplo, é um dos entusiastas da ideia de que o sofrimento é primordial à própria condição humana, dando sentindo e forma à existência. Por sinal, Nietzsche era um grande admirador da música, afirmando que sem ela não haveria motivos para viver. Por coincidência ou não, seu compositor favorito, e também seu grande amigo, era Wagner, um dos quais mais aprecio da música clássica (a qual, admito, nem tenho tanto entrosamento).

Há ainda um extenso número de filósofos e artistas que relacionam e pautam sua arte no próprio sofrimento. Goethe talvez seja o mais proeminente destes, escrevendo um livro tão intrinsecamente entrelaçado a esse sentimento - um verdadeiro capataz literário do pobre Werther - que inspirou toda uma geração de jovens germânicos ao suicídio. O próprio, no entanto, fez ressalvas ao observar o fenômeno, afirmando que enquanto escrevia acreditando refletir a vida, as pessoas o liam procurando mergulhar em tal reflexo.

Não foi só o Romantismo, obviamente, que bebeu da fonte do sofrimento. Mesmo quando a arte já tinha se desvincilhado em grande parte do cristianismo ocidental - que claramente cultua esse sentimento - os alemães caíram em profunda depressão com o Expressionismo, e a própria Arte Contemporânea nas suas primeiras décadas exibia um caráter pessimista e sôfrego da sensibilidade artística.

A História mostra que grande parte da arte ocidental sempre tangenciou o sofrimento humano. Portanto, renunciar ao mesmo talvez seja um caminho sem volta para a esterilização da capacidade artística, pelo menos no sentido que a entendemos. Será mais desejável uma humanidade que sofre e produz arte, ou uma humanidade feliz, mas artisticamente estéril?